Partindo do princípio de que os seres humanos se
desenvolvem pelas relações que estabelecem com seu meio, Perrenoud vê as
competências não como um caminho, mas como um efeito adaptativo do homem às
suas condições de existência. Desse modo, cada pessoa, de maneira diferente,
desenvolveria competências voltadas para a resolução de problemas relativos à
superação de uma situação, como, por exemplo, saber guiar-se no caminho de
volta para casa a partir de um ponto de referência, o que mobiliza competências
de reconhecimento ou mapeamento espacial; saber lidar com as dificuldades
infantis, o que aciona competências pedagógicas; saber construir ferramentas, o
que estimula competências matemáticas e lógicas, entre outras.
Diante disso, antes de nos inserirmos como educadores em
atividades pedagógicas relativas ao ensino-aprendizagem, devemos reconhecer
nossas próprias competências individuais, procurando mapear nossas
possibilidades e limites na execução do trabalho. Se, por acaso, detectamos
alguns limites, devemos, segundo nos aponta Perrenoud, agir de forma a buscar o
desenvolvimento das competências que ainda não construímos. Da mesma forma,
para as competências que percebemos já ter desenvolvido, necessitamos
adequá-las aos usos a que se destinam, o que, por si só, já mobiliza outras
competências em nós, relativas à capacidade de avaliação. Tal processo
avaliativo pode ser utilizado como estratégia facilitadora ao trabalho do
professor em sala de aula, bem como estratégia para impulsionar tal
profissional à busca de cursos de formação continuada que auxiliem na
continuidade do seu desenvolvimento enquanto educador.
No que diz respeito aos alunos, devemos saber que
existem, como apontado anteriormente, competências não-escolares que
desenvolvemos a partir das relações sociais que estabelecemos e as nossas
condições de existência. Por isso, a escola deve levá-las em consideração,
aproveitando-as de forma a auxiliar o desenvolvimento das competências
escolares que ainda necessitem ser desenvolvidas pelos alunos.
Mas, como desenvolver tais competências? Para responder a
essa questão, precisamos antes analisar alguns dos princípios pedagógicos da
Educação pelas competências. O primeiro diz respeito à relação do educador com
os conteúdos de ensino. Essa primeira análise se faz necessária para a
compreensão de que o desenvolvimento das competências pessoais não prescinde o
desenvolvimento das análises e compreensões em torno de um conhecimento; ou
seja, para ensinarmos algo precisamos lançar mão da organização dos conteúdos a
serem trabalhados, bem como favorecer, com o uso de estratégias diferenciadas,
a assimilação dos conteúdos pelos alunos. Do mesmo modo, para aprendermos algo,
precisamos mobilizar nossos saberes teóricos e práticos. Resumindo: o
desenvolvimento de competências específicas não se faz sem a utilização de
conteúdos (saberes) que as fundamente.
Assim, segundo Perrenoud (1999, p. 2),
[...] as competências elementares evocadas não deixam de ter relação com os programas escolares e com os saberes disciplinares: elas exigem noções e conhecimentos de matemática, geografia, biologia, física, economia, psicologia; supõem um domínio da língua e das operações matemáticas básicas; apelam para uma forma de cultura geral que também se adquire na escola. Mesmo quando a escolaridade não é organizada para desenvolver tais competências, ela permite a apropriação de alguns dos conhecimentos necessários. Uma parte das competências que se desenvolvem fora da escola apela para saberes escolares básicos (a noção de mapa, de moeda, de ângulo, de juros, de jornal, de roteiro etc.) e para as habilidades fundamentais (ler, escrever, contar). Não há, portanto, contradição obrigatória entre os programas escolares e as competências mais simples.
Esse primeiro princípio, quando bem-compreendido, livra o
modelo da aprendizagem a partir do desenvolvimento de competências críticas
como as apontadas por Perrenoud (1999, p. 1), sobre a ideia errada de alguns
educadores sobre sua teoria. Diz ele:
Tal caricatura da noção de competência permite a ironia
fácil de dizer que não se vai à escola para aprender a fazer um anúncio
classificado, escolher um roteiro de férias, diagnosticar uma rubéola,
preencher o formulário do imposto de renda, compreender um contrato, redigir
uma carta, fazer palavras cruzadas ou calcular um orçamento familiar. Ou então
para obter informações por telefone, encontrar o caminho numa cidade, repintar
a cozinha, consertar uma bicicleta ou descobrir como utilizar uma moeda
estrangeira.
A esse tipo de crítica, Perrenoud (1999, p. 2) responde:
Digamos primeiramente que as competências requeridas na
vida cotidiana não são desprezíveis, pois uma parte dos adultos, mesmo entre
aqueles que seguiram uma escolaridade básica completa, permanece bem
despreparada diante das tecnologias e das regras presentes na vida cotidiana.
Dessa forma, sem limitar o papel da escola a aprendizagens tão triviais,
pode-se perguntar: de que adianta escolarizar um indivíduo durante 10 a 15 anos
de sua vida se ele continua despreparado diante de um contrato de seguro ou de
uma bula farmacêutica?
Segundo Perrenoud, as competências referem-se ao domínio
prático de um tipo de tarefas e de situações e, neste ponto, os educadores
estão certos em questionar sua teoria, mas, por outro lado, tais domínios
práticos só podem ser alcançados se junto com eles desenvolvemos também as
habilidades dos alunos, o que só se pode realizar a partir da compreensão do
conteúdo que explica aquele domínio. Por exemplo, se queremos desenvolver o
domínio prático da Matemática nas tarefas cotidianas dos alunos, precisamos
desenvolver suas habilidades numéricas. Para tanto, precisamos introduzir
conceitos sobre número, quantidade, agrupamento etc., que fazem parte do
conjunto de temáticas que formam os conteúdos.
E como diferenciar as habilidades das competências?
Segundo Perrenoud, as competências são
traduzidas em domínios práticos das situações cotidianas que necessariamente
passam compreensão da ação empreendida e do uso a que essa ação se destina. Já as habilidades são representadas pelas
ações em si, ou seja, pelas ações determinadas pelas competências de forma
concreta (como escovar o cabelo, pintar, escrever, montar e desmontar,
tocar instrumentos musicais etc.).
Sobre o desenvolvimento das competências, em seu livro 10 novas competências para ensinar,
Perrenoud apresenta uma lista de competências necessárias aos professores para ensinar com base na sua teoria. São elas:
organizar e dirigir situações de aprendizagem;
administrar a progressão das aprendizagens;
conceber e fazer evoluir dispositivos de diferenciação;
envolver os alunos em suas aprendizagens e em seu
trabalho;
trabalhar em equipe;
participar da administração escolar;
informar e envolver os pais;
utilizar novas tecnologias;
enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão;
administrar a própria formação.
Mais tarde, Perrenoud afirma a necessidade de se
desenvolver uma décima primeira competência ligada ao trabalho docente, que
está relacionada à ação do professor enquanto um ator coletivo no sistema de
ensino e enquanto um direcionador do movimento dos educadores no sentido da
profissionalização e da prática reflexiva sobre seu próprio fazer.
Diante de tais competências profissionais, devemos,
também, favorecer de forma organizada o desenvolvimento das habilidades
requeridas no âmbito escolar. Para tanto, devemos rever os currículos escolares
de forma a permitir que os conteúdos sejam, de fato, compreendidos pelos
alunos, tanto pela via intelectual, quanto pela via prática.
O currículo escolar baseado nas competências
Quando falamos de currículo, pensamos imediatamente num
conjunto de matérias reunidas em torno de disciplinas a serem ministradas por
professores no interior dos locais formais de educação, o que confere a tal
instrumento um caráter estático, de imobilidade, dado o seu aprisionamento
secular dentro deste conceito. Mas não estamos acostumados a pensar que o
currículo tem vida, é móvel e aberto a alterações, mudanças, avaliações e
adequações.
Geralmente, quando ouvimos os professores falando sobre
os currículos escolares, ouvimo-los dizer que “da maneira que a turma está, não
vai ser possível cumprir o currículo”, ou ainda que “o currículo é muito
extenso, não vai dar para cumprir”. Tais falas nos levam em direção a uma outra
ideia sobre os currículos, a de que eles servem para indicar a matéria a ser
transmitida, passada aos alunos, como se a estrutura do currículo, por si só,
garantisse a aprendizagem por parte dos alunos.
Atualmente, convivemos com várias teorias educacionais de
cunho sociopsicológico que nos apontam que a aprendizagem não é um ato
instantâneo, imediato, mas que se concretiza por ações reflexivas, concretas,
que permitam a articulação dos saberes adquiridos e que estejam em relação com
a realidade dos alunos. Justamente por isso, a ideia de currículo como garantia
da aprendizagem deve ser rechaçada.
Muitas vezes, segundo Perrenoud, faltam aos alunos alguns
conhecimentos básicos em campos específicos da Matemática, por exemplo, que
foram estudados de forma descontextualizada e que quando precisam ser resgatados
por ele para sua utilização na vida prática, acabam por não fazer correlação
consciente entre a matéria dada e a competência exigida.
É justamente por isso que convém, de acordo com
Perrenoud, incentivar o desenvolvimento das competências a partir da escola,
relacionando constantemente os saberes formais e sua utilização em situações
concretas. Iss o nos leva a afirmar também a necessidade de revisão dos
currículos escolares para que possam ir ao encontro das reais necessidades
educacionais, deixando de figurar (o currículo) como aparelho de reprodução de
saberes e conhecimentos, passando a atuar como instrumento de reflexão da
prática pedagógica dos professores e demais profissionais da Educação, uma vez
que por meio dele, ao lhe conferir mobilidade, podemos também identificar,
analisar e superar as dificuldades relativas à ação docente. Tal proposta
fundamenta a criação dos projetos político-pedagógicos que deveriam ser
utilizados como ferramenta de análise, avaliação e superação das dificuldades
cotidianas a partir das propostas filosófico-pedagógicas de cada escola, bem
como dos currículos a serem desenvolvidos pelos professores em suas
disciplinas.
Por outro lado, ao observar a necessidade de adequação
dos currículos ao desenvolvimento de competências para a vida prática,
Perrenoud avalia que o desenvolvimento de competências a partir da escola
envolve uma diminuição de conteúdos a serem transmitidos, logo, envolve também
a adequação dos currículos à nova proposta pedagógica. Ao afirmar tal necessidade
de diminuição dos conteúdos, Perrenoud o faz na intenção de propiciar um tempo
maior para que os alunos possam exercitar seus saberes.
No entanto, Perrenoud compreende que os currículos são
geralmente montados com vistas a favorecer uma elite social em detrimento dos
grupos menos favorecidos economicamente, mas considera que, apesar das
dificuldades a serem enfrentadas pelos professores para colocar em andamento a
proposta pedagógica baseada no desenvolvimento de competências, a abordagem
pedagógica com base nas competências pode trazer como consequência novos
caminhos de luta diante das desigualdades sociais, uma vez que crianças vindas
de elites econômicas e crianças oriundas de classes menos favorecidas
economicamente teriam as mesmas oportunidades de desenvolvimento de
competências lógicas para a vida prática, não cabendo mais a distinção entre
“pobres” e “ricos” a partir de suas capacidades intelectuais (o que, a
propósito, já deveria ter sido superado há muito tempo).
A avaliação escolar sob a óptica da competência
De acordo com Perrenoud, uma vez repensado o currículo e
sua função, deve-se atentar para o fato também de que tal instrumento
necessitará ser revisto de tempos em tempos, bem como deverá ser revista também
a atuação dos professores e a organização pedagógica da escola, para que seus
princípios educacionais não se percam ou cristalizem no tempo.
Para tanto, a escola deverá rever, prioritariamente, sua
forma de administração, pensando a Educação a partir de bases democráticas e
não mais a partir de bases autoritárias. Falar da escola democrática não é só
pensar na relação de igualdade, ou melhor, de horizontalidade entre professores
e alunos, mas pensar também a mesma relação entre os membros da comunidade
escolar. É preciso, pois, desfazer-se das ameaças autoritárias e impositivas e
dar lugar a práticas reflexivas no âmbito da gestão escolar.
Um outro fator importante na consideração sobre a
avaliação é que, segundo Perrenoud, tal processo é sempre regulador da
autonomia dos atores escolares, mas que, nem por isso, deve significar controle
das ações de cada ator educacional. Ao contrário, Perrenoud afirma que as
escolas devem se interrogar a todo instante sobre suas finalidades, sua
metodologia, seu funcionamento, suas práticas de forma aberta, coletiva.
A finalidade última dos processos de avaliação seria a de
identificar as dificuldades existentes no momento de se colocar em prática os
processos pedagógicos dos alunos (referindo-se às dificuldades de aprendizagem)
e os processos pedagógicos mais amplos (referindo-se às dificuldades de
gestão).
Concluindo, para Perrenoud avaliar para as competências
significa possibilitar a construção de espaços e tempos pedagógicos que
favoreçam o desenvolvimento de domínios práticos de ação e reflexão tanto aos
alunos quanto aos professores e demais atores escolares.
Texto:
Valéria da Hora Bessa
Fragmento
do Livro: Teorias da Aprendizagem
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